“Somos só crianças crescidas, querida, / Inquietas até que o sono nos dê guarida.” [1]

alice01 divulg O que nos maravilha em Alice?Alice, seu País das Maravilhas e suas aventuras Através do Espelho, seguem angariando legiões de fãs e estudiosos. Eles encontram em suas linhas todo tipo de sabedoria e maluquice: desde complexos enigmas matemáticos até não menos cabeludas patologias psíquicas. Discutem-se essas inferências praticamente desde sua publicação, em 1865. É inútil colocar mais lenha nessa fogueira, que deve ser deixada aos cuidados dos ativos membros das diferentes Lewis Carroll Societies distribuídas ao redor do mundo todo, especialistas na matéria.

A pergunta que nos colocamos aqui é bem mais simples das respondidas por aqueles que esmiúçam o conteúdo dessa obra, em busca de onde o autor retirou as referências ou o que cada uma delas significa. Nossa questão é: o que a faz ser tão tocante para tantos por tanto tempo? A resposta também é direta e simples: o pensamento de Lewis Carroll era simpático à representação do mundo e aos sentimentos que são peculiares das crianças, gostava de exercitar-se na lógica infantil e soube descrevê-la de forma que adultos e crianças ficassem tocados por ela. Ele era grande apreciador de charadas e jogos de palavras, o que para as crianças é o feijão com arroz de suas vidas.

Boa parte da graça da infância provém do jeito canhoto e literal por meio do qual elas compreendem o que se diz e o que se faz. As cenas sociais ou domésticas também constituem enigmas que elas precisam decifrar, os quais podem parecer bem estranhos aos recém-chegados, exatamente como ocorria com Alice em suas andanças na onírica terra das maravilhas. Brincar com múltiplas interpretações de uma palavra é fácil para aqueles que lembram bem que há muito pouco viveram na carne essas confusões, já que estão ainda familiarizando-se com a linguagem e os costumes do planeta dos adultos. Quando crescemos, junto com a maior parte das memórias da infância, perdemos a familiaridade com sua lógica, esquecemos que de pequenos, ao nosso modo, também filosofávamos. Carroll nos devolve a conexão com esses pensamentos perdidos porque, como artista e matemático, sempre os apreciou, como se fosse uma língua arcaica que ele nunca se esquecera de falar.

Suas amigas foram sucedendo-se, Alice Liddell não foi a primeira nem a última. Eram sempre meninas, porque nelas ele encontrava a puerilidade que seu espírito puritano exaltava, o apreço pelos jogos de linguagem e a familiaridade com as fantasias oníricas com que seu pensamento costumava exercitar-se. Grande parte das histórias infantis que marcaram época é de autoria de adultos que se mantiveram em contato com a linguagem e a lógica da infância, insistentes praticantes dessa língua esquecida. Por isso, essas histórias não contêm uma intenção moral nem pedagógica, pois eles não queriam ensinar coisas às crianças, apenas compartilhar com elas o prazer dessa forma de pensamento e expressão [2].

cenario2 divulg O que nos maravilha em Alice?As aventuras de Alice são oníricas, o autor soube respeitar as regras de construção dos sonhos e também por isso nossa empatia com essa história é forte, afinal visitamos a cada noite o mundo mágico dos sonhos. Dependendo da conexão que temos com nosso inconsciente, podemos lembrar mais ou menos deles, mas todos sonham. Nosso cérebro não desliga – é uma pena! –, ele aproveita o repouso para reacomodar o que viveu, equilibrar as tensões e alucinar soluções para as pendências não resolvidas. O resultado são nossos sonhos e pesadelos.

Em certos momentos, as obras que relatam universos surrealistas podem parecer uma barafunda aleatória de alucinações sem sentido, mas não são. Prova disso é que nem toda obra, apenas por parecer maluca, consegue se comunicar com o público, ou seja, nós reconhecemos por intuição aquelas que realmente são sonhos e ou respeitam sua lógica. As que fazem eco em nossas próprias produções oníricas demonstram conhecer nossos segredos. Lewis Carroll conseguiu essa proeza, e esse é seu mérito.

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